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Por Educação do Campo...

Tempos de exasperação de ânimos são particularmente favoráveis ao exercício da violência. No âmbito da sociedade, ainda que isso não signifique ataque direto à integridade física de quem quer que seja, necessariamente revelam uma disputa em torno de bens comuns ou recursos cujo acesso interfere em garantias e direitos individuais e coletivos. Esse é o contexto que demarca os limites e as possibilidades da Educação do Campo, uma educação que nasce com o objetivo de se fazer emancipadora juntamente com o campesinato, nesse momento de particular fortalecimento do latifúndio no Brasil.

Como forma de fugir de constatações simplistas, em vista da conjuntura de fortalecimento de um poderoso lobby ruralista, atuando em estratégicas arenas políticas que incluem as esferas institucionais do poder executivo, legislativo e judiciário, buscamos trazer a público um contraponto em reflexões que convidam ao posicionamento político e engajamento social. Dessa vez somos brindados pelos apontamentos de Ângela Massumi Katuta, que nos concedeu uma entrevista por ocasião de sua participação na banca de avaliação de uma dissertação de mestrado que investigou a relação entre a escola e a juventude camponesa na região de Londrina, defendida no Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Estadual de Londrina.

Malgrado derrotas estruturais e duradouras, como as determinadas pelo que os movimentos sociais denominaram de Lei da Grilagem (Lei 11.952/2009), do Código do Desmatamento (Lei 12.727/2012) e agora os desdobramentos ainda incertos das manobras ruralistas contra a desapropriação das terras flagradas com trabalho escravo (Instrução Normativa Incra 80/2015), acreditamos no poder transformador do conhecimento e é esse o sentido da Educação do Campo.

Se há algo que tem conspirado a favor dos ruralistas é a desinformação da sociedade sobre a contribuição dos camponeses para a sociedadebrasileira, importância essa que vai além dos 38% do valor da produção agropecuária medidos pelo IBGE. Seu caráter desconcentrado distribui renda e dinamiza as economias locais, gerando círculos virtuosos que em tudo se opõe à lógica do latifúndio improdutivo, que nada produz, ou do latifúndio produtivo, que não distribui, salvo os custos ambientais e sociais da atividade.

Essas são algumas das externalidades que estão na raiz da articulação ruralista, cuja razão de ser são as fraudes fundiárias que precisam ser legalizadas, a improdutividade que se faz necessário acobertar, as práticas ambientais criminosas a serem justificadas em nome da produção de alimentos que provém majoritariamente da agricultura camponesa.

Invisibilizar o campesinato é, assim, condição, para que essa estratégia surta efeito, do mesmo modo que disso depende o poder de anulação das pautas que impliquem partilha dos bônus daí advindos. A julgar pelas posições inscritas na arena política do momento, não há sinais de que os poderosos estejam dispostos a renunciara frações de terra ou recursos públicos cuja captura se dá em prejuízo dos camponeses. A isso tem servido o discurso da eficiência do agronegócio, essa expressão política que encobre a voracidade desdenhosa de fronteiras éticas ou territoriais.

Por isso, perguntamos à Ângela M. Katuta qual o sentido em demandar investimentos do Estado brasileiro, que supõe medidas do governo federal e também do governo estadual, em Educação do Campo. Vejamos suas considerações:

"O significado do Estado investir em Educação do Campo vai além da dimensão escolar, pois se trata de ampliar políticas de produção de alimentos e, obviamente isso tem desdobramentos na economia, pois permite a manutenção do preço da cesta básica, da alimentação. Trata-se também de investir em projetos efetivamente voltados para a sustentabilidade, porque a gente sabe que o agronegócio, independente do que se diga, está ligado a uma diminuição da biodiversidade ecossistêmica, da poluição dos aquíferos, do ar, à contaminação das pessoas, aumento de doenças ligadas à ingestão de agrotóxicos etc. Enfim, há um conjunto de elementos e de problemáticas associadas à produção de commodities, que também decorre do forte investimento no setor e do pequeno investimento que o Estado ultimamente tem feito na Educação do Campo.

O investimento na Educação do Campo beneficia não somente os agricultores, os camponeses mas, também, generalizadamente, todas as pessoas da cidade, ou enfim, todos os seres humanos porque nós precisamos nos alimentar. Investir na Educação do Campo é investir na permanência do agricultor familiar que produz alimentos e é nessa perspectiva que alguns movimentos sociais fazem a defesa de permanência no campo, articulada com a produção de alimentos saudáveis.

Então há uma questão ligada à saúde pública, tanto do campo quanto da cidade e isso tem a ver também com investimento em outro projeto societário, mais democrático, com uma desigualdade social menor, uma distribuição de renda tanto na cidade como no campo muito melhor. Isso quer dizer investir num outro projeto societário, daí o tensionamento na Educação do Campo: a Educação do Campo traz tensionamento porquê implica investir num outro projeto societário contra as relações do modo capitalista de produção."

Ao ser convidada a avaliar a situação da Educação do Campo em termos de investimento, avanços institucionais e os recuos na sua implementação e/ou consolidação, a professora disse o seguinte:

"Trata-se de um campo bem complexo, até porque os investimentos e as lutas históricas dos movimentos sociais resultaram em avanços na perspectiva de construção de instrumentos legais: há a conquista do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), há também uma série de leis e políticas como desdobramentos das demandas dos movimentos sociais. Porém, ao mesmo tempo, a gente também tem recuos, por exemplo, o fechamento generalizado das escolas do campo no país.

No estado do Paraná também não é muito diferente, embora o Paraná se distinga por conta da atuação e da organização da Articulação Estadual da Educação do Campo. Do ponto de vista da articulação, da organização social dos movimentos sociais que demandam Educação do Campo, o Paraná é um dos estados que tem uma articulação muito forte, tanto que uma das lideranças aqui do Paraná é a única pessoa de movimentos sociais que tem assento no Fórum Nacional de Educação do Campo.

Isso mostra, obviamente, uma capacidade de articulação dos movimentos sociais do Paraná mas, por outro lado, nós temos investidas cada vez mais intensas e fortes, no sentido da divisão do dinheiro do PRONERA para que seja destinado a empresas de educação, então a gente tem avanços e recuos.

Um dos avanços, pelo menos na atual conjuntura, são os editais do Programa Nacional do Livro Didático para os livros da Educação do Campo. Mas o que fazem as editoras? Comoelas são empresas de livros, trocam uma figura, uma imagem ou outra sem fazer uma mudança de conteúdo e de forma para a Educação do Campo. Para elas, os livros são meramente mercadorias, então, nesse campo temos avanços legais, institucionais, jurídicos, mas também tem recuos, sempre há muito tensionamento.

No Paraná, faz mais de quatro anos que a atual gestão vem investindo no recuo do ponto de vista das concepções de Educação do Campo: tem fechado escolas e não tem fortalecido as diretrizes curriculares estaduais da Educação do Campo, que foi uma das primeiras a surgir no Brasil, isso é um marco no estado do Paraná. O governo federal também não tem adotado políticas para fortalecer as escolas do campo, pelo contrário, tem praticado uma política de fechamento das mesmas à medida que até cria elementos dificultadores mas não constrói outros de fiscalização, de denúncia, de prestação de contas do fechamento.

Em função disso, a Articulação Estadual da Educação do Campo elaborou uma cartilha que foi amplamente divulgada na 14ª Jornada de Agroecologia de Irati, para evitar o fechamento das escolas do campo. A questão do fechamento das escolas do campo no Paraná tem sido tão séria que a articulação estadual fez um material para evitar que isso aconteça.
O caminho é a organização das comunidades, então podemos falar que se há avanços eles se devem à organização dos movimentos sociais colocados nacionalmente, apoiados pelas universidades.
Quanto aos recuos, eles estão relacionados aos estados que tem o agronegócio muito forte: no Paraná, tem havido fortes investidas contra essa estruturação inicial implementada nos governos anteriores em atendimento às demandas e organização dos movimentos sociais. O governo estadual anterior [Roberto Requião]  fez um investimento efetivo na materialização das políticas voltadas para a Educação do Campo no Paraná em diálogo com os movimentos sociais, e agora há um notável refluxo dessas políticas.

Percebe-se estratégias ligadas à organização das equipes pedagógicas e ligadas também à forma como se trabalha na escola; a ausência de políticas de formação continuada para os professores que trabalham nas escolas do campo, tudo isso configura uma estratégia de desmantelamento do que foi construído na gestão anterior e o que resiste o faz por muita força e engajamento políticos dos movimentos sociais."

Que desafios dessa ordem não façam esmorecer os camponeses, os educadores e educadoras e todos os que não se furtam ao árduo exercício de assentar a cada dia um pequeno tijolo no muro da civilização, haja o que houver.

Ângela Massumi Katuta é professora da UFPR e membro da rede de pesquisadores da QuestãoAgrária no Paraná. Entrevista: Izabele Vila Real Diamante e Silas Rafael da Fonseca. Transcrição: Thiago da Silva Melo. Texto e edição: Eliane Tomiasi Paulino -LATEC/UEL
Postado originalmente em: http://questaoagrariapr.webs.com em 03 de setembro de 2015.

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