Por Lizely Borges - Terra de Direitos | 06/05/22
Localizada em São Mateus do Sul (PR), população tradicional vive ameaças ao modo sustentável e coletivo de organização da vida comunitária.
A Comunidade de Faxinal do Emboque protocolou, na última terça-feira (03), uma contestação na Vara da Fazenda Pública de São Mateus do Sul (PR) em defesa do território tradicional e da responsabilidade do Estado brasileiro, na figura dos poderes públicos e judiciário, em proteger o modos de vida comunitário e sustentável dos faxinalenses.
A contestação é uma resposta da comunidade tradicional à uma Ação Declaratória Constitutiva movida em 2016 por chacreiros locais que disputam parte da área de 166 hectares declarados e reconhecidos como território faxinalense. No processo, os autores da ação questionam a legalidade das normativas que asseguram proteção à este povo tradicional, bem como – ao residirem em território faxinalense - pleiteiam o uso autônomo das áreas, como para a instalação de cercas, não submetido ao acordo comunitário de uso das terras coletivas e as regras estabelecidas pela área especial de conservação (Aresur).
A ação movida pelos autores teve sentença favorável em 19 de abril de 2018 pelo Juízo da Comarca de São Mateus. No entanto, o Tribunal de Justiça do Paraná anulou esta sentença em 09 de abril de 2019 e determinou, a fim de assegurar o direito de manifestação da comunidade no processo, o retorno da ação para a 1ª instância. A ação segue para manifestação dos autores e da comunidade.
“O que a gente espera que essa ação seja favorável a comunidade faxinalense. A gente que nasceu e se criou dentro da comunidade e em harmonia com o meio ambiente, animais, conservando a natureza a gente vê que pessoal que chega de fora está destruindo tudo o que a cultura preservou durante todos esses anos que a gente está na comunidade. Se o ganho de causa for pelo pessoal que movendo a ação contra o faxinal quem perde com isso é toda população porque o meio ambiente será deteriorado, o pessoal que chega não quer saber da floresta, quer saber da erva mate, não fica a fruta nem para os passarinhos. Se perdermos esta ação será uma derrota para toda comunidade faxinalense”, destacam os comunitários sobre as expectativas que cercam o julgamento da ação.
Uma das práticas tradicionais da comunidade faxinalense é a criação à solta dos animais em espaço coletivo. Foto: Terra de Direitos
Compreendidos como complexos sistemas agroflorestais (SAFs), os faxinais no sul do Brasil conjugam, há mais de dois séculos, a organização do espaço coletivo em terras destinadas à moradia com a criação solta de animais e terras destinadas ao plantio, especialmente de alimentos para subsistência. Além do uso coletivo da terra, as relações de compadrio e de mutirão também marcam as caraterísticas tradicionais deste povo.
Imagem extraída pela pesquisadora Alcimara Foetsch. Em amarelo as áreas coletivas para moradia e criação de animais à solta. Em vermelho, a área de plantar.
Existência e autorreconhecimento
Localizada no centro-sul do estado, a comunidade composta por 57 famílias utiliza de maneira sustentável a terra e bens naturais há mais de 50 anos, segundo pesquisas. De acordo com a pesquisadora Alcimara Foetsch, em tese de doutoramento, a comunidade faxinalense “surgiu a partir da desagregação de um grande latifúndio que existia no local cujo desmembramento deu lugar a lotes menores que foram repassados para funcionários da ex-fazenda. Esses funcionários eram caboclos que passaram a criar os animais em comum e extrair a erva-mate nativa dando origem ao Sistema Faxinal”.
Diferentemente do que os autores sustentam na ação ajuizada em 2016 de que “não tomou por base qualquer autoreconhecimento declarado pelos próprios integrantes do suposto grupo social” a comunidade reconheceu sua identidade tradicional muitos anos antes do protocolo da ação.
Ainda que o autoreconhecimento não esteja condicionado à chancela estatal, em 2007 - nove anos antes do ajuizamento da ação - a comunidade solicitou ao município, a certidão de autoreconhecimento da identidade faxinalense. Já em 2010 a Portaria nº 28/2010 outorgou a certidão de autoreconhecimento emitida pelo Instituto de Terras, Cartografia e Geociências do Estado do Paraná (ITCG).
Os autores ainda afirmam na ação que a auto-definição não pode ser entendida como presunção de veracidade e que, portanto, a Convenção 169 para Povos Indígenas e Tribais - tratado ratificado pelo Brasil e norma supralegal - não se aplica à comunidade de Emboque. Na ação os comunitários apontam a afirmação como grave.
Foto: Terra de Direitos
Proteção Ambiental
Em 2009, a Comunidade Faxinal de Emboque foi reconhecida pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Paraná como Área Especial de Uso Regulamentado (Aresur) e inscrita no Cadastro Estadual de Unidades de Conservação. Fruto da demanda popular, a destinação do ICMS Ecológico reconhece e estimula a preservação do meio ambiente pelas comunidades faxinalenses. Com isso, o município de São Mateus pode receber recursos para a destinação para políticas de preservação ambiental.
“Respeitamos o meio ambiente, vivemos em harmonia com a natureza. Não precisamos destruir o meio ambiente para sobreviver, tentamos observar e usar os recursos da floresta a de uma forma sustentável para não degradar e possa ficar para descendentes. Nossas práticas tradicionais, desde cultivo das lavouras, não usam organismos geneticamente modificados, ainda conservamos a semente crioula. São ganhos para meio ambiente e pessoal que consome nossos produtos”, destacam as famílias faxinalenses sobre uma relação sustentável com meio ambiente que data de muito tempo.
Contudo, os autores sustentam na ação que a comunidade faxinal foi criada com o único objetivo de recebimento do ICMS Ecológico e que ele serve a ganhos individuais. No entanto, a realidade de recebimento do recurso via município é bastante distinta da acusação. Pela Lei Municipal 1780/2008 a Associação da comunidade deve apresentar um plano de desenvolvimento sustentável de uso do recurso, como manutenção das nascentes, preservação da cultura faxinalense e manutenção de estradas rurais. Além disso, a norma determina que a Associação preste semestralmente contas à Comissão Municipal de Fiscalização do Faxinal sobre os recursos repassados pelo município pelo ICMS ecológico.
Reivindicações
Como os autores da ação instalaram cercas que cortam a área coletiva e assim dividindo o território após a sentença do juízo de primeiro grau, posteriormente anulada - os faxinalenses reivindicam na contestação a imediata retirada das cercas. “A mera reprodução da lógica das propriedades privadas, das cercas nos criadouros comuns e fatiamento do território coloca em risco a manutenção do Faxinal e suas práticas tradicionais. As áreas comuns no território tradicionalmente ocupado é o que permite a manutenção dos faxinalenses que são duramente afetados com a privatização de seus espaços. Ainda mais grave é o pedido de que não sejam criados animais soltos, que ataca frontalmente uma das características mais importantes do modo de vida dos faxinalenses”, diz um trecho da contestação.
As famílias faxinalenses ainda solicitam a realização de visita técnica ao território pela Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Estado e realização de visita e elaboração de laudo técnico pelo Instituto de Água e Terras para comprovação de que as áreas pleiteadas e cercadas pelos autores estão no perímetro da área do criadouro comunitário.
Veja na íntegra:
https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/comunidade-faxinalense-emboque-contesta-acao-em-defesa-do-territorio-tradicional/23738
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