O
rechaço ao latifúndio não é novidade em nenhuma sociedade que se pretende
avançada, até porque todos os países que alcançaram o desenvolvimento só o
fizeram em vista da capacidade de construir pactos e alianças internas que
culminaram na sua eliminação, seja por meio de reformas agrárias clássicas,
seja por meio da instituição de mecanismos tributários ou ônus econômicos que os
tornaram inviáveis.
No
Brasil real, de impressionantes números do agrícola mas também do agrário, o
volume das safras agrícolas tem sido sistematicamente evocado para blindar a
grande propriedade, tudo devidamente articulado ao silêncio sobre os ônus civilizacionais
dessa escolha.
Tais
representações sociais não seriam possíveis caso não estivéssemos diante da
persistência do latifúndio. Embora extirpado por força da retórica renovada que
orienta a política do Estado brasileiro, para não mencionar o discurso
acadêmico que se pretende moderno, os domínios senhoriais vem se perpetuando
graças ao pacto antidemocrático que ainda não conseguimos derrotar, malgrado
nossa democracia representativa e nossa Carta Magna cidadã.
Se
no passado a vontade da casa grande se manifestava no poder de acumular e de
dispor de vidas humanas ao seu arbítrio, na atualidade se revela na investida
monopolizante e dilapidadora do mais primordial e precioso bem comum: a terra
que, de quebra, comporta os elementos indissociáveis à vida: água, ar, fauna e
flora. Nada que pudesse dispensar o
respaldo da lei miúda, aquela que afronta a Constituição mas parece não fazê-lo
e, mesmo quando o faz explicitamente, se impõe pela força de arranjos jurídicos
avessos à justiça social.
Embora
siga vigente o artigo 225 da Constituição, segundo o qual todos têm direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, em 2012 tratou o poder público de renunciar
explicitamente à tarefa de defendê-lo e preservá-lo. Bastou sancionar a Lei
12.651, para muitos o Código do Desmatamento, agora em vigor graças ao Cadastro
Ambiental Rural que, na prática, passa a borracha nos crimes ambientais
pretéritos e amplia as possibilidades de devastação futura.
Seria
legítima a pauta dos ruralistas, ao clamarem por uma legislação ambiental mais
branda, como forma de prover comida ao povo brasileiro? Que o digam milhões de
citadinos hoje afetados por uma inédita falta de água, que doravante tenderá a
ser cada vez menos episódica. Inútil
blasfemar contra São Pedro pela falta de chuva, porque há leis meteorológicas
infalíveis, a do regime pluviométrico sujeito aos ciclos da natureza é uma
delas.
O
manejo parcimonioso do solo, a intocabilidade da mata ciliar e a conservação
das Reservas Legais é peça importante nisso, porque sem infiltração suficiente
para a recomposição dos lençóis freáticos, não haverá excedente hídrico
suficiente para a manutenção das nascentes e rios. Isso não poupará a cidade.
Tudo
em nome da viabilidade econômica dos chamados agricultores familiares que, em
sendo pobres, não o são por causa da necessária parcimônia ambiental mas, em
regra, por causa das nesgas de terra que possuem. De acordo com o IBGE (2012),
mais de 2,7 milhões de agricultores tem a seu dispor área média inferior a 2,9
hectares. A soma de tudo o que ocupam nada menos que 1,6 milhões deles é
idêntica à fração territorial de uma única fazenda, a Curuá: até 2011 foi
ostentada como propriedade privada graças a artimanhas fraudulentas perpetradas
por Cecílio Rego de Almeida, fundador de uma das maiores construtoras do país.
Embora
a justiça tenha determinado o cancelamento da matrícula desse imóvel em 2011
após uma batalha jurídica de mais de 15 anos, ainda há margem para recurso
contra a sentença. Parece indubitável
que nesse país de dimensões continentais a existência de tantos minifúndios são a outra face dos
latifúndios, a maior parte constituída graças à grilagem de terras públicas e
falsificação de documentos, raramente contestados e nunca retornados ao
patrimônio público sem a paga do que se convencionou chamar de benfeitorias,
via desapropriação, esse instrumento constitucional posto de lado nos últimos
anos, já que os poucos assentamentos de reforma agrária foram feitos mediante a
compra de terras pelo governo.
Consta
no registro do Sistema Nacional de Cadastro Rural (INCRA, 2011) um único imóvel
com área de 6.250.021 hectares, fração próxima ao que dispunham 2,2 milhões de
estabelecimentos rurais identificados pelo IBGE no último censo agropecuário.
Importante destacar que esse imóvel está enquadrado na categoria de situação
jurídica não informada, o que pode significar qualquer coisa, exceto
propriedade legal.
Em
qualquer país democrático e de direito, não haveria óbices para em eventuais
situações dessa natureza, um único ato legal e sem qualquer ônus para os cofres
públicos, retomá-lo, como forma de destinar tal patrimônio público a quem de
direito, os agricultores em situação de vulnerabilidade fundiária. Entretanto,
isso está longe de acontecer por aqui, a julgar pela declaração inaugural da
autoridade máxima do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento pelos
próximos quatro anos, Kátia de Abreu, que laconicamente decretou o fim do
latifúndio no Brasil.
Com
a palavra, nós cidadãos, porque no repúdio político ao autoritarismo desde a
fala há margem para o enfrentamento dessa violência não menos cerceadora da
dignidade e do devir quanto a dos tempos da senzala.
Referências
BRASIL.
Lei 12.651 de 25 de maio de 2012. Dispõe sobre a proteção da vegetação nativa;
altera as Leis 6.938, de 31 de agosto de 1981, 9.393, de 19 de dezembro de
1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis 4.771, de 15 de
setembro de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória
2.166-67, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Brasília, Diário
Oficial da União, 26 maio 2012.
INCRA.
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Sistema Nacional de
Cadastro Rural: primeira apuração de 2011. MDA/INCRA: 2011.
IBGE
- Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2006:
segunda apuração - Brasil, grandes regiões e unidades da federação. Rio de
Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em: < http://sidra.ibge.gov.br>. Acesso
em: 24 fev. 2014.
Eliane
Tomiasi Paulino
Grupo
de Estudos Agrários-LATEC/UEL
Crédito
da imagem: Editora da UNESP, blog no qual foi originalmente publicado (http://blog.editoraunesp.com.br/2015/02/artigo_25.html.).
Disponibilizado originalmente em: http://questaoagrariapr.webs.com em 25 de
fevereiro de 2015.