Nesses
tempos em que desenvolvimento se confunde com tecnologia de ponta expressa em
objetos sofisticados, substâncias artificiais e comportamento consumista, é o
mercado que se insinua como mediador legítimo da nossa existência, nos coagindo
ao ritmo frenético do princípio do fazer para o ter numa esquizofrênica corrida
pela felicidade que sempre se esgota no ato do consumo.
Daí
sermos confrontados com desafios cada vez menos humanos, tanto no sentido
biológico quanto psicossocial, para seguirmos como parte dessa perversa
engrenagem, que cobra um tributo à nossa saúde, sanidade, coerência e
perpetuidade enquanto espécie.
Cientes
de que a educação detém particular papel na formação da consciência crítica,
aquela que nos investe da capacidade de compreender como o mundo funciona para,
na coesão de ideias, construir estratégias para que ele possa funcionar melhor,
é que nos propomos a aproximações entre os saberes acadêmicos, depurados no exercício
das ideias, e o dos camponeses, construídos no enfrentamento dos obstáculos ao
viver.
Assim
transcorreu o trabalho de campo de estudantes de graduação e pós graduação em
Geografia da UEL no Assentamento Dorcelina Folador, em Arapongas, norte do
Paraná. Muitas foram as lições recebidas na ocasião. A começar pela mais
inspiradora de todas, expressa pela história de resistência e superação de
obstáculos aparentemente intransponíveis, como o é o da exclusão à terra de
trabalho, tão corriqueira nesse país continental confrontado pela pequenez
ditada pelo latifúndio, produtivo ou não.
Lições
de resiliência são lições de cidadania imprescindíveis a nós educadores e aos
que se tornam cada vez mais descrentes em face das notícias de exclusão,
violência e corrupção que mais anestesiam do que mobilizam. Por isso, essa
experiência pode ser descrita como um antídoto à resignação, porque verificamos
in loco que a possibilidade de termos um mundo mais justo é razão inversa do
perigoso veneno sorvido onde a utopia é expulsa pela desesperança como
espetáculo ou como experiência do viver.
O
Assentamento Dorcelina Folador, no qual vivem 92 famílias, é esse sal da terra,
forjado numa insolvente fazenda produtora de sementes comerciais que foi à
falência em 1999 após acumular uma dívida agrícola quatro vezes maior ao seu
valor em terra e instalações.
Sabedores
de que no Brasil terra não se ganha, se conquista, mesmo em sendo terras
públicas como essas que assim se tornaram no momento em que coube ao Estado
absorver o rombo financeiro, inicialmente 20 famílias ocuparam a fazenda, às
quais outras foram se juntando e resistindo, até a imissão de posse pelo Incra.
A
resiliência dessas famílias faz lembrar a de 52,6% dos agricultores
brasileiros, que dispõem de apenas 2,9 hectares (IBGE, 2009), em média, para
alimentar-se a si e à família, somando uma participação de apenas 1,2% da área
declarada dos imóveis rurais (Incra, 2012).
Melhor
aquinhoados, dispõem de 6 hectares por família, onde por força da organização
interna articulada ao suporte técnico da Emater, chegaram a uma produção
leiteira modelo, o suficiente para culminar na instalação do Laticínio da
Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa (COPRAN),
construído com recursos do BNDES e que já processa cerca de 15.000 litros
diários de leite, dos quais 6.000 provém do próprio assentamento, sendo o
restante captado em outros assentamentos da região.
É
bom que se diga, então, que a luta pela terra coroada pelo assentamento, ao
mesmo tempo que rompe com o destino forçado à exclusão, abastece mesas: essa
produção, bem como a de frutas, verduras e cereais, é vendida em mercados
locais e vai também para as escolas públicas, via Programa Nacional de
Alimentação Escolar.
Enfim,
na terra pouca, mas generosa pelas mãos dos que ousaram negar o destino,
construindo as pontes que levaram à dignidade, outras lições nos foram dadas,
como a ciência de que a desmobilização pode ser o invólucro da entropia, porque
vislumbram que a cada desafio vencido, há outros a vencer.
Cultivar
a pertença camponesa é um deles, a fim de que os herdeiros na terra sigam como
sujeitos da luta pela transição do modelo agrícola convencional, sonho
acalentado por Pedrinho, João e Nathan, lideranças inquietas ante a ameaça do
veneno lançado no ar e na água pela fábrica de agrotóxicos que somente prospera
em função da crença geral de que não é mais possível trabalhar com, e não
contra, a natureza.
Enquanto
prevalecer a monocultura, a diversidade será sempre um obstáculo a ser
eliminado, para que triunfe a lógica da simplificação da qual se nutre o lucro
imediato. É na policultura que reside o repositório da vida, mas ela requer
terra repartida e, ao mesmo tempo, homens, mulheres, jovens e crianças
empoderados pela missão de cuidar da mãe terra sem se descuidar da produção de
alimentos sanos. A esses haverá o devido reconhecimento, traduzido em renda
digna e cidadania plena. Por tudo isso e somente por isso a reforma agrária
continua sendo uma luta de todos!
Eliane
Tomiasi Paulino; Marcelo Barreto
Grupo
de Estudos Agrários - Latec/UEL
Postado
originalmente em: http://questaoagrariapr.webs.com em 10 de junho de 2014.