PEC 215: A AMEAÇA QUE RONDA O
TERRITÓRIO DOS POVOS TRADICONAIS
(texto originalmente publicado em
abril de 2015)
No
Brasil, o Estado se apresenta muitas vezes conivente com as ações opressoras no
campo. Segundo dados da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) referentes ao ano de 2013, foram registradas 847 áreas
em conflito no Brasil, envolvendo 99.798 famílias. Das 31 pessoas assassinadas
no referido ano, 15 são indígenas; 61,3% desses assassinatos foram cometidos contra
algum grupo ou etnia caracterizados como povos tradicionais.
Muito
pouco tem sido feito para punir os infratores.
A maior parte dessa violência é empreendida por organizações privadas
que buscam sua reprodução pelos mecanismos da extração indevida da renda da
terra. No entanto, o poder público
também tem a sua participação; no momento em que age para defender o direito de
propriedade privada da terra. Tudo isso
acontece em meio a uma situação de indefinição quando a distribuição das terras
aos seus verdadeiros usufrutuários.
A
Proposta de Emenda Constitucional n° 215 de 2000 (a PEC 215), pretende
transferir para o Congresso a exclusividade na oficialização da demarcação das
terras tradicionalmente ocupadas e a ratificação das terras já homologadas. Tal proposta não foi elaborada pelo legislativo
senão com o intuito de fechar o cerco àqueles que lutam pela defesa do seu modo
de vida, do seu território e pela dignidade de seu povo.
Cabe
lembrar que a elaboração desta PEC se deu antes de o Brasil ratificar a
convenção 169 da OIT em 2004, que dá aos povos tradicionais, incluindo os
indígenas, a possiblidade de se autoafirmarem e de requererem o reconhecimento,
delimitação e titulação das terras que tradicionalmente ocupam com base no
Decreto 4.887 de 2003. Cabe lembrar
também que no ano seguinte, o então Partido da Frente Liberal (o PFL) entrou
com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2339) questionando o Decreto
pelo fato de não existir nenhuma lei anterior à sua elaboração e se opondo ao
reconhecimento desses sujeitos. Atualmente,
a ADI 2339 encontra-se tramitando no Supremo.
Quando
se trata das terras tradicionalmente ocupadas não estamos falando de relações
calcadas essencialmente nas trocas mercantis e na produção voltada para a
obtenção do lucro; mas na vida, que se traduz no fundamento do existir dos seus
sujeitos. É provável que a supressão dessas terras conduza a um processo
acelerado de degradação das florestas, das águas e de sociedades inteiras que
vivem delas.
A
PEC é apenas o capítulo de uma história antiga.
A transformação da terra em equivalente de mercadoria e a conversão do
grande capital em proprietário de terras, conforme afirma o professor José de
Souza Martins vêm fazendo do campo no Brasil cenário de verdadeiros desastres;
dos quais não há nada do que no orgulharmos enquanto humanidade. Foi durante os anos da ditadura militar, em
nome do desenvolvimento, que os indígenas da Amazônia sofreram grande golpe
contra a sua civilização.
Primeiro
veio o cerco ao território indígena, empreendido pelos grandes proprietários
com incentivos fiscais por parte do Estado.
Em pouco tempo, territórios inteiros foram loteados passaram a ficar
dentro de fazendas. Depois vieram as
remoções e o confinamento em reservas específicas onde a possiblidade de
obtenção do alimento se tornou mais escassa.
Também vieram as grilagens, os assassinatos, as expulsões e as doenças
trazidas pelo não índio. Este é um processo que ainda vem acontecendo;
principalmente nas regiões Norte e Centro-oeste do país.
Caso
a PEC 215 entre em vigor, não somente as novas demarcações correrão o risco de
ficarem apenas no papel, mas de as já existentes serem extintas. Isso pode significar retrocesso para esses
sujeitos e para a sociedade como um todo.
Este quadro pode se tornar cada vez mais provável quando examinamos a
Comissão Especial montada para analisar a proposta. Dos seus 50 membros, 20 tiveram suas
campanhas eleitorais financiadas por empresas do agronegócio, madeireiras e
bancos. Isto inclui o próprio presidente
Câmara dos Deputados que resgatou a PEC logo no início do seu mandato e que é filiado
à Frente Parlamentar da Agropecuária.
Os
sujeitos que se definem como indígenas, quilombolas, pescadores artesanais,
faxinalenses etc. vêm conquistando faz 27 anos o direito de mostrarem para a sociedade
a existência do seu modo de vida. Desde
que as terras tradicionalmente ocupadas foram incluídas na nova Constituição
pelo artigo 231, os povos tradicionais vêm tendo o direito ao reconhecimento
assegurado por lei. Agora, os seus
destinos podem ficar nas mãos de corporações que buscam privatizar as terras
que por séculos encontram-se nas mãos desses povos.
Manter
o Executivo à frente da demarcação não é antidemocrático. Por outro lado, buscar um modelo que priorize
a produção a qualquer custo no campo, assentado em mecanismos irregulares de
extração da renda da terra e sem o devido respeito ao diversos modos de vida
pode trazer sérias consequências.
Trata-se de defender e respeitar um sujeito que carrega consigo uma
memória e que não se ajoelha diante do hegemônico na construção de um projeto
vida. Vida esta que se torna cada vez mais difícil de recriar quando são
atingidos pela remoção compulsória e se veem obrigados a morar de forma
precária nas grandes cidades.
Os
instrumentos jurídicos que ameaçam esses territórios são vários e muito está
sendo feito por parte desses povos para combatê-los. O avanço do agronegócio e
do capitalismo acompanhado da violência, da grilagem, da injustiça encontra
barreira na resistência empreendida pelos indígenas e grupos camponeses. Resistência que sempre ganha novos
significados frente a cada ato ou ação empreendida contra eles e na busca de um
futuro possível.
Termina-se
assim com as palavras de José de Souza Martins (1986), no qual afirma que para
cada conflito que existir no campo sempre se plante uma semente de liberdade:
A cerca só num certo sentido
cerca a terra do índio e do pobre. Cerca
também os direitos do proprietário, do fazendeiro, do capitalista. Cerca-os todos. Define o do pobre e o do rico. Mas, se o do pobre está dentro, do que cercou
o rico, então, ao fechar, a cerca abre.
Pois, a cerca fala, também sobre os direitos daquele que foi cercado, os
direitos do índio, do posseiro, do pequeno agricultor. Se o direito é construído sobre o torto,
sobre a usurpação do direito do outro, desvenda para o outro o seu
direito. É nesse sentido que a cerca não
fecha, abre: abre para a consciência, para o direito lesado, abre para a luta
pelos direitos, abre a luta contra o direito edificado sobre a injustiça (p.
11).
REFERÊNCIAS:
CPT. Conflitos no Campo – Brasil 2013.
Goiânia: CPT Nacional, 2014.
EAACONE. Quilombolas do Vale do Ribeira Apoiam a
Mobilização Nacional Indígena e Repudiam a PEC 215. Eldorado, 03 de abril
de 2015. Disponível em: http://www.eaacone.org/news/quilombolas-do-vale-do-ribeira-apoiam-a-mobilizacao-nacional-indigena-e-repudiam-pec-215/. Acesso em
04/04/2015.
ISA. Presidente de Comissão Promete Adiar
Votação da PEC 215 por Dois Meses. São Paulo, 17 de março de 2015.
Disponível em: http://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/presidente-de-comissao-promete-adiar-votacao-de-pec-215-por-dois-meses. Acesso em:
23/03/2015.
MARTINS, José de
Souza. Não Há Terra Para Plantar Neste
Verão: o cerco das terras indígenas e das terras de trabalho no
renascimento político do campo. 2ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
Marcelo Barreto
Grupo de Estudos Agrários,
LATEC/UEL