A
tese de que palavras não são inocentes aplica-se à atual disputa entre o
Ministério do Meio Ambiente (MMA) e o Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (MAPA) em torno da definição de imóvel rural, para efeito de
implantação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), do qual depende a desobstrução
do Novo Código Florestal.
Por
mais que isso pareça ser da alçada dos ambientalistas e dos proprietários
rurais, seu desfecho terá implicações tão profundas para a sociedade que convém
atentar ao que está efetivamente em jogo, o desmatamento para além do que foi
previsto quando da modificação do Código Florestal em 2012.
Na
ocasião, venceu o discurso de que era severo demais, porque impunha a todos os
proprietários a obrigatoriedade de preservação de vegetação nativa no entorno
de rios, nascentes e topos de morro, as APPs, além de reserva legal (RLs) em
proporções compatíveis com a geografia local. Daí veio a possibilidade de um
tratamento diferenciado e mais brando para os pequenos proprietários.
A
justificativa pode até fazer sentido, pois segundo o último Censo Agropecuário
(IBGE), nada menos do que 52,8% dos agricultores brasileiros vivem em
estabelecimentos com área média de 2,9 hectares. Isso por si só faz as
obrigações ambientais soarem como injustiça aos que já são profundamente
injustiçados, desafiados a sobreviver da agricultura em parcelas ínfimas de
terra, mas nem por isso o devido quinhão deixará de ser reclamado pela
natureza, cujo equilíbrio depende da intocabilidade de fragmentos florestais. O
que dizer então da prerrogativa de qualquer agricultor somente fazê-lo caso a
sociedade pague mais por isso?
Segundo
o Censo, sobram ainda 98,8% de terras em mãos privadas, parte das quais em
imensos estabelecimentos que ultrajam o princípio de equidade mínima para a
ordem social. Contudo, a terra é uma dádiva da natureza, fonte insubstituível de
toda forma de vida e sem qualquer participação humana em sua constituição, logo
nenhum título ou cerca capaz de ameaçar o bem comum pode prevalecer por fato ou
direito.
Não
será o Novo Código Florestal que irá salvar os pequenos agricultores e tampouco
é esse seu objetivo: prova disso é o mencionado impasse que o mantém bloqueado
desde 2012.
A
divisão entre pequenos e aquinhoados do campo é tão clara que há um ministério
para cada um, o MDA para os primeiros e o MAPA para os médios e grandes
proprietários, esse que está tentando, por uma manobra linguística, tornar
todos pequenos para efeito da Lei ambiental: para isso basta mudar o foco do
proprietário para a propriedade, criando um CAR para cada matrícula de imóvel.
Se
for bem sucedido nessa tarefa, imediatamente muitos médios e grandes
proprietários que assim o são pela soma de imóveis que possuem, passarão a
figurar diante da Lei como pequenos proprietários, e isso lhes permitirá
reduzir significativamente a área conservada em APPs e RLs.
Isso
repercutirá no desmembramento de muitas outras médias e grandes propriedades,
que ficarão pequenas somente no papel, para que seus detentores se beneficiem
de uma legislação que, em nome dos vulneráveis do campo, nos imputou a todos um
risco extraordinário, porque o ambiente que necessitamos depende das RLs e
APPs.
Esse
eventual desfecho poderá tornar ainda mais nefasto o Novo Código Florestal, já
alheio ao fato de que ao direito de propriedade corresponde o dever do
proprietário de cuidar daquilo que pulsa sob sua guarda, mas não lhe pertence,
a natureza. Qualquer manobra capaz de outorgar o direito de destruí-la para
além do suportável deve ser amplamente repudiada, sob pena de as gerações
vindouras pagarem por esse crime de omissão.
Eliane
Tomiasi Paulino
Grupo
de Estudos Agrários - Latec
Universidade
Estadual de Londrina