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UM ASSENTAMENTO PARA (VI)VER
(texto originalmente publicado em maio de 2014)




Nesses tempos em que desenvolvimento se confunde com tecnologia de ponta expressa em objetos sofisticados, substâncias artificiais e comportamento consumista, é o mercado que se insinua como mediador legítimo da nossa existência, nos coagindo ao ritmo frenético do princípio do fazer para o ter numa esquizofrênica corrida pela felicidade que sempre se esgota no ato do consumo.

Daí sermos confrontados com desafios cada vez menos humanos, tanto no sentido biológico quanto psicossocial, para seguirmos como parte dessa perversa engrenagem, que cobra um tributo à nossa saúde, sanidade, coerência e perpetuidade enquanto espécie.

Cientes de que a educação detém particular papel na formação da consciência crítica, aquela que nos investe da capacidade de compreender como o mundo funciona para, na coesão de ideias, construir estratégias para que ele possa funcionar melhor, é que nos propomos a aproximações entre os saberes acadêmicos, depurados no exercício das ideias, e o dos camponeses, construídos no enfrentamento dos obstáculos ao viver.

Assim transcorreu o trabalho de campo de estudantes de graduação e pós graduação em Geografia da UEL no Assentamento Dorcelina Folador, em Arapongas, norte do  Paraná. Muitas foram as lições recebidas na ocasião. A começar pela mais inspiradora de todas, expressa pela história de resistência e superação de obstáculos aparentemente intransponíveis, como o é o da exclusão à terra de trabalho, tão corriqueira nesse país continental confrontado pela pequenez ditada pelo latifúndio, produtivo ou não.

Lições de resiliência são lições de cidadania imprescindíveis a nós educadores e aos que se tornam cada vez mais descrentes em face das notícias de exclusão, violência e corrupção que mais anestesiam do que mobilizam. Por isso, essa experiência pode ser descrita como um antídoto à resignação, porque verificamos in loco que a possibilidade de termos um mundo mais justo é razão inversa do perigoso veneno sorvido onde a utopia é expulsa pela desesperança como espetáculo ou como experiência do viver.

O Assentamento Dorcelina Folador, no qual vivem 92 famílias, é esse sal da terra, forjado numa insolvente fazenda produtora de sementes comerciais que foi à falência em 1999 após acumular uma dívida agrícola quatro vezes maior ao seu valor em terra e instalações.

Sabedores de que no Brasil terra não se ganha, se conquista, mesmo em sendo terras públicas como essas que assim se tornaram no momento em que coube ao Estado absorver o rombo financeiro, inicialmente 20 famílias ocuparam a fazenda, às quais outras foram se juntando e resistindo, até a imissão de posse pelo Incra.

A resiliência dessas famílias faz lembrar a de 52,6% dos agricultores brasileiros, que dispõem de apenas 2,9 hectares (IBGE, 2009), em média, para alimentar-se a si e à família, somando uma participação de apenas 1,2% da área declarada dos imóveis rurais (Incra, 2012).

Melhor aquinhoados, dispõem de 6 hectares por família, onde por força da organização interna articulada ao suporte técnico da Emater, chegaram a uma produção leiteira modelo, o suficiente para culminar na instalação do Laticínio da Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa (COPRAN), construído com recursos do BNDES e que já processa cerca de 15.000 litros diários de leite, dos quais 6.000 provém do próprio assentamento, sendo o restante captado em outros assentamentos da região.

É bom que se diga, então, que a luta pela terra coroada pelo assentamento, ao mesmo tempo que rompe com o destino forçado à exclusão, abastece mesas: essa produção, bem como a de frutas, verduras e cereais, é vendida em mercados locais e vai também para as escolas públicas, via Programa Nacional de Alimentação Escolar.

Enfim, na terra pouca, mas generosa pelas mãos dos que ousaram negar o destino, construindo as pontes que levaram à dignidade, outras lições nos foram dadas, como a ciência de que a desmobilização pode ser o invólucro da entropia, porque vislumbram que a cada desafio vencido, há outros a vencer.

Cultivar a pertença camponesa é um deles, a fim de que os herdeiros na terra sigam como sujeitos da luta pela transição do modelo agrícola convencional, sonho acalentado por Pedrinho, João e Nathan, lideranças inquietas ante a ameaça do veneno lançado no ar e na água pela fábrica de agrotóxicos que somente prospera em função da crença geral de que não é mais possível trabalhar com, e não contra, a natureza.

Enquanto prevalecer a monocultura, a diversidade será sempre um obstáculo a ser eliminado, para que triunfe a lógica da simplificação da qual se nutre o lucro imediato. É na policultura que reside o repositório da vida, mas ela requer terra repartida e, ao mesmo tempo, homens, mulheres, jovens e crianças empoderados pela missão de cuidar da mãe terra sem se descuidar da produção de alimentos sanos. A esses haverá o devido reconhecimento, traduzido em renda digna e cidadania plena. Por tudo isso e somente por isso a reforma agrária continua sendo uma luta de todos!

Eliane Tomiasi Paulino e Marcelo Barreto

Grupo de Estudos Agrários - UEL

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