Em
dezembro último, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
tornou público um documento produzido no 10 Fórum de Usuários de Dados, com
vistas a elaboração dos questionários a serem aplicados por ocasião do Censo
Agropecuário 2015, o qual pode ser obtido no sítio:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/forum_questionario_censoagro2015/Censo_Agropecuario_2015.pdf),
no qual propõe-se uma série de mudanças que merecem uma discussão mais ampla.
Aqui nos ocuparemos de questionar uma delas em particular, o tratamento
diferenciado a ser adotado para estabelecimentos com menos de 5 hectares, que
resultará na eliminação da discriminação de variáveis econômicas que não se
manifestam senão por meio de densidades monetárias.
Embora
tenha sido apresentado como proposta suscetível de comentários até 30 de
janeiro desse ano, ao que respondemos segundo prazos e meios definidos pelo
próprio IBGE, a prudência pede a publicização de algumas inquietações, pois se
levada a termo a proposta, doravante perderemos mais um rico referencial da
série histórica dos dados referentes a um amplo estrato dos minifúndios no
Brasil. Ademais, será dado mais um passo institucional no sentido de consolidar
a estratégia de homogenizar para ocultar, o que já aconteceu no último
recenceamento em relação aos estabelecimentos de dimensões gigantescas, que
foram agrupados num único estrato (mais de 2.500 hectares), tornando impossível
saber quantos e como são segundo divisões intermediárias, as quatro
historicamente utilizadas entre 2.000 e mais de 100.000 hectares.
Se
neste caso resta mobilizarmo-nos para que o IBGE retorne às tabulações segundo
os parâmetros consagrados, já que tais divisões são importantes inclusive para
analisarmos e publicizarmos perfis dos estabelecimentos segundo o Grau de
Utilização da Terra (GUT) e o Grau de Eficiência da Exploração (GEE), os
parâmetros que segundo a Lei 8.629/93 definem a possibilidade de desapropriação
dos imóveis improdutivos, cabe também evitar que, no extremo oposto, a
homogeneização venha ocultar a dinâmica socioprodutiva dos minifúndios.
Tal
proposta está orientada por uma visão que restringe o levantamento a uma
simplificação economicista, já que o parâmetro para a proposição foram as
receitas monetárias em 2006, sacrificando-se dessa feita informações que
ocultam as estratégias camponesas de autoconsumo e trocas internas, exatamente
as decisivas para aqueles mais penalizados pela escassez de terra. Cabe, ademais,
destacar que esse corte está dirigido precisamente ao conjunto numérico mais
expressivo dentre as unidades agrícolas do país. Em 2006, eles correspondiam a
2.095.836 estabelecimentos, ou seja, 40,5% do agro brasileiro.
A
justificativa de que essa decisão é de ordem operacional não é satisfatória,
pois o próprio corte se dá a partir de um referencial que é ideológico,
devidamente respaldado por um viés teórico que vem orientando as políticas
públicas para o campo no Brasil, segundo uma dualidade em que os agricultores
de pequena escala, denominados pelo Estado de familiares, não fariam parte do
circuito da agricultura comercial, leia-se, a empresarial, para a qual existe o
secular ministério cuja designação o revela, o Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento (MAPA), e um ministério infante para a primeira, criado somente
em 1999 e sugestivamente designado de Ministério do Desenvolvimento Agrário.
Distinções dessa natureza exigem que minimamente compreendamos em que elas
efetivamente se apegam.
A
justificativa do IBGE para a mudança mencionada é que foram identificados
1.138.967 estabelecimentos sem registro de receitas monetárias em 2006.
Decide-se, assim, que a irrelevância censitária repousa nos
microestabelecimentos. Contudo, se tomarmos como referência não as receitas
monetárias, mas o registro de produção efetiva no ano de 2006, chegamos a um
perfil surpreendente: é exatamente esse o estrato que acusa o maior percentual
de unidades ativas no ano mencionado, senão vejamos:
Dentre
os estabelecimentos com até 5 hectares, 90,9% foi produtivo em 2006; desse
estrato em diante, quanto maior a área dos estabelecimentos, mais registros de
improdutividade vão sendo encontrados. No estrato de 5 a 100 hectares, onde
ainda se poderia encontrar uma razão mínima para a premissa de que quanto menor
o estabelecimento, menor a sua participação na produção, obviamente colocado o
parâmetro da escala, o percentual é de 88,8%. Por fim, nos estabelecimentos com
mais de 1.000 hectares o índice foi de 88,2%!
Saliente-se
que tal proporção é absolutamente grave se atentarmos para as variáveis aqui em
tela. O IBGE optou pelo parâmetro da receita monetária para distinguir os
microestabelecimentos e dado a sua limitação óbvia, a falta de terras e toda a
cadeia de faltas a ela associadas, não causa surpresa o fato de muitos não a
gerarem. O problema se revela quando nos voltamos para os grandes
estabelecimentos, onde nenhuma variável estrutural poderia ser extensiva a tão
expressiva proporção de estabelecimentos sem qualquer registro de produção, e
aqui não se trata de receita, mas de franco atentado à função social da terra,
já que não houve uso algum, o que está devidamente vedado pela Constituição
Brasileira.
Dito
isso, conclui-se que o modo como são representados os sujeitos da agricultura
brasileira são coerentes com a recusa ao enfrentamento dos problemas que estão
em sua raiz, sendo um deles o latifúndio, do qual deriva os limites
territoriais para tantos que inclusive podem agora perder o pouco que lhes restava,
a visibilidade a ser extraída dos dados censitários, e é bom que se diga que
isso não se presta a gozos particulares, mas a políticas públicas capazes de
dinamizar suas potencialidades e tocar em suas vulnerabilidades.
Evidentemente,
tal recusa não expressa uma unanimidade dentro do IBGE e tampouco dentro do
Estado brasileiro, tanto que pela primeira vez na história o último Censo
Agropecuário valeu-se de uma metodologia que distingue os denominados
agricultores familiares dos agricultores não familiares, culminando no I Censo
da Agricultura Familiar.
Paradoxalmente,
isso foi suficiente para o desencadeamento de uma reação inusitada, coroada
pela recusa do Ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, de comparecer à
cerimônia de lançamento do Censo, ocorrida em 30 de setembro de 2009. Tal ato
de protesto foi uma resposta ao incômodo provocado pelo detalhamento da
economia agrícola, por se revelar constrangedor ao consenso dependente da
manutenção de uma imagem de ineficiência econômica dos pequenos estabelecimentos
agrícolas e do suposto protagonismo dos grandes.
A
desproporcionalidade entre recursos, produção e emprego entre os segmentos
familiar e empresarial finalmente se sobressaía e poderia ser tomada como um
instrumento efetivo de planejamento e gestão pública para o campo, até porque o
Censo Agropecuário é o único estudo abrangente do qual se pode dispor em escala
nacional. Segundo a metodologia utilizada nas apurações, a agricultura
familiar, em posse de apenas 12,5% da área agricultável do país, por ocasião do
levantamento era responsável por 74,4% dos empregos gerados, pela produção de
33,9% do arroz, 69,8% do feijão, 38,3% do café, 58,1% do leite, 85,9% das aves
e 59% dos suínos, enfim, da comida básica do dia a dia.
Conclui-se
que num país onde a concentração de terras é das mais altas e a destinação dos
recursos públicos para o fomento da agricultura obedece padrões idênticos de
desproporcionalidade, por razões estratégicas é imperioso manter oculta essa
eficiência descomunal e, da mesma maneira, falsear o desempenho dos
estabelecimentos que não têm como invocar nenhuma desvantagem para justificar
sua inferioridade desproporcional ao limite da total improdutividade, conforme
aqui destacado.
Mas
o Estado não é monolítico, e isso deve ser um alento para os que persistem na
luta pela reforma agrária e pelo Estado de direito, como também um estímulo
para que novas forças sociais se constituam em favor da homologação dos
territórios indígenas e das comunidades tradicionais, sem abdicar do enfrentamento
da necessária agenda da salvaguarda ambiental, revogada juntamente com a
mudança do Código Florestal Brasileiro em 2012.
Há
aqui um Estado em disputa porque há padrões civilizatórios em disputa, nos
quais a propriedade privada da terra tem centralidade insuspeita, tanto que foi
necessário a promulgação de uma Lei, a 11.326/1996, que nos desse ciência da
existência de uma agricultura de base familiar, pois a vinculação entre
propriedade eficiente e empresariado rural foi naturalizada de tal forma que pequena
propriedade sempre foi tratada como se desnecessária ao país, quando não a
depositária do atraso, daí a designação de agricultura de subsistência, leia-se
abaixo da existência. Por sua vez, os atributos da agricultura empresarial, ao
que o IBGE designou de não familiar, foram forjados à luz de uma ideia de
pujança, progresso e desenvolvimento que merecem análises mais cuidadosas.
Mudar a metodologia de apuração do censo pode dificultá-las, por isso há que se
questionar isso.
Entendemos
que as representações expressam a tentativa de manutenção de consensos, sendo
que o desempenho inusitado dos invisibilizados ante a parte que lhes cabe no
latifúndio pode se constituir em trunfo para as lutas políticas, e aqui se pode
pensar tanto em terras quanto em recursos do fundo público de fomento à
agricultura. Em 2006, no Paraná, tais unidades de produção empregavam 69,9% dos
trabalhadores agrícolas e geraram 43% da receita da agropecuária, em apenas 4,2
milhões dos 19,9 milhões de hectares da área territorial do estado. Imagine-se
seu potencial caso houvesse maior justiça fundiária e creditícia!
É
por isso que a simplificação da categoria "agricultores" cumpre um
propósito que não é meramente retórico, e isso se revela inclusive em
publicações que, sob o manto da pretensa neutralidade e cientificidade, só
fazem escancarar as disputas de classe. A discordância quanto à pertinência do
Censo da Agricultura Familiar e mesmo à existência do Ministério do
Desenvolvimento Agrário é um exemplo disso, cabendo aqui lembrar que ambos
foram produto das lutas camponesas, que levaram o Estado brasileiro a
reconhecer a necessidade de tratamento minimamente distinto para agricultores
profundamente desiguais. Por isso, reiteramos publicamente a necessidade de o
IBGE enriquecer, ao invés de simplificar os mecanismos de coleta e
disponibilização dos dados referentes aos estabelecimentos agropecuários. Que
se permita ao campo falar por meio dos dados!
Eliane
Tomiasi Paulino
Grupo
de Estudos Agrários - Latec
Universidade
Estadual de Londrina
Postado
originalmente em: http://questaoagrariapr.webs.com em 28 de fevereiro de 2014.