NOS 50 ANOS DO GOLPE, COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE (CNV) OUVE GUARANIS VITIMADOS PELA DITADURA NO PARANÁ
Além de ter negado presença indígena, colonização
agrícola e Itaipu 'aumentaram pressão fundiária' sobre oeste paranaense e contribuíram
para esfacelamento de aldeias.
"Mesmo sendo tarde, tudo isso tem que ser
conhecido. Ninguém sabe o que passamos aqui", conclui Casemiro Pereira, 54
anos, pouco antes de se despedir da psicanalista Maria Rita Kehl com um aperto
de mãos e a promessa de que sua história será contada ao país. A integrante da
Comissão Nacional da Verdade (CNV) ouviu seu relato nessa segunda-feira numa
abafada sala de paredes brancas da escola Teko Nemoingo, município de São
Miguel do Iguaçu.
A reportagem é de Tadeu Breda e publicada por Rede
Brasil Atual – RBA.
Cercada de lavouras de milho por todos os lados, a aldeia
Ocoy, às margens do lago de Itaipu, foi a quarta terra indígena visitada por Maria
Rita durante o périplo da CNV pelos territórios guarani do oeste do Paraná. O
pequeno gabinete escolar, enfeitado com passarinhos azuis, fez as vezes de
auditório onde Casemiro deixou-se "marear" pela memória do
sofrimento. E onde, minutos antes, seu vizinho, Silvino Vaz, 50 anos,
confessara a tristeza trazida pelas recordações. "Foi muito duro."
Enquanto o aniversário de 50 anos do golpe promovia
protestos populares nas grandes cidades e discursos presidenciais em Brasília,
a psicanalista se sentava a ouvir antigos relatos dos indígenas que vivem na
fronteira com o Paraguai. Foram testemunhos de assassinatos, surras, trabalhos
forçados, esbulho territorial e fugas ocorridas antes e depois do assalto
militar ao poder, antes e depois das inundações do Rio Paraná provocadas pela
construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
"É minha sexta audiência com povos
indígenas", contabilizou a representante da CNV, citando visitas aos suruí
do Pará, aos waimiri e ianomamis de Roraima, aos pataxó e tupinambá da Bahia e
aos kayowá do Mato Grosso do Sul, além de uma recepção aos xavante, em
Brasília. "Aos poucos, porque não sou nenhuma especialista, quero cumprir
meu mandato na comissão para denunciar o maior número possível de violações aos
direitos humanos dos povos indígenas entre 1946 e 1988."
Apenas os relatos dos guarani do oeste do Paraná
demandariam de Maria Rita um trabalho hercúleo. Sozinha, em dois anos e meio,
seria impossível sistematizar a memória das arbitrariedades cometidas contra as
etnias brasileiras no período. "É missão para 50 pessoas", reconhece.
A tarefa só lhe está sendo menos ingrata graças ao empenho de pesquisadores que
se dedicam à questão. Um deles é Ian Packer, antropólogo do Centro de Trabalho
Indigenista (CTI) que no ano passado produziu o relatório "Violações dos direitos humanos e territoriais dos guarani no oeste do Paraná".
Escrito para auxiliar a CNV, o estudo se atém aos
42 anos que, por lei, delimitam a atuação da comissão. Em mais de cem páginas,
contextualiza os depoimentos colhidos no último fim de semana pela psicanalista,
e mostra como "empresas e proprietários de terra interagiram com
organismos e agentes públicos durante a ditadura e no período pré-golpe na
consecução de seus interesses privados". O relatório se dedica ainda a
embasar, com evidências documentais e históricas, como os índios foram
excluídos dos empreendimentos faraônicos realizados pelo regime, e que
"atropelaram seus direitos".
A história que Casemiro Pereira quis contar a Maria
Rita, mesmo depois de tanto tempo, refere-se tanto à tomada de terras indígenas
por colonizadores quanto à construção de Itaipu. Em seu relatório, Packer
afirma que "o processo de expropriação territorial dos guarani do oeste do
Paraná foi conduzido sob a égide de um sistemático descumprimento da legislação
indigenista e de um genocídio silencioso acobertado pelo regime de exceção
vigente no país".
À sua maneira, Casemiro ratificaria pessoalmente
tais afirmações à CNV. "O Incra (Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária) pegou esse pedaço aqui, entrou, e chegava colono dizendo que
tinha comprado a terra e que índio tinha de sair, senão ia morrer",
atesta. "Vinha com polícia, com arma, dava três dias pra gente sair. Índio
foi para o Paraguai, fugido. Caía no Rio Paraná e cruzava. Quem ficou foi
morrendo, matado." E quem não tinha canoa atravessou a fronteira no
fôlego, como Silvino, também morador de Ocoy. "Passei o Paranazão a
nado."
De acordo com o testemunho dos mais de 20 guarani
ouvidos por Maria Rita Kehl em três dias nos municípios paranaenses de Guaíra, Terra
Roxa e São Miguel do Iguaçu, o país vizinho foi apenas um dos destinos dos
índios que escapavam à chegada violenta dos brancos nos anos 1940, 1950 e 1960.
Muitos também se dirigiram ao Mato Grosso do Sul, que também está do outro lado
do rio. Outros ainda partiram para São Paulo e Santa Catarina.
Os relatos evidenciam que os índios que ficaram na
região foram forçados a trabalhar na abertura de picadas e estradas, e na
colheita da erva mate. "Hoje em dia a gente fala em agronegócio, mas a
gente vê que nessa porção do território brasileiro, no início do século
passado, já começavam os negócios com uma mega empresa chamada Mate
Laranjeira", aponta a integrante da CNV. "Temos que investigar mais,
mas pelo padrão das violações e pela onipresença dessa companhia, é bem
possível que tenha contado com apoio de agentes do Estado para expulsar e
escravizar índios."
Recorrendo à própria memória ou à memória de seus
pais, já falecidos, os guarani atualmente instalados nas 13 aldeias da região
de Guaíra e Terra Roxa deram testemunho da exploração de mão de obra na
produção do mate. Com mais de 60 anos, Damião Acosta afirmou à psicanalista que
trabalhou em ervatais desde os seis anos de idade. "Às vezes éramos pagos
pelo trabalho, às vezes não. Se não quisesse trabalhar, apanhava", disse,
em sua língua materna. "Em vez de pagar, o branco costumava matar o
índio."
Hoje morador da aldeia Y'hovy, a dez minutos do
centro de Guaíra, Damião construiu uma pequena réplica das estruturas de bambu
que utilizavam para secar e defumar o mate. E, usando ramos de eucalipto,
porque a terra que ocupam já não possui árvores de mate, mostrou a Maria Rita
Kehl como se processava a erva naqueles tempos. Uma hora depois, Rufina de
Souza contaria à CNV que seu avô pediu ao seu pai para fugir rumo ao outro lado
do rio pouco antes de receber um tiro em pagamento às exaustivas horas de
trabalho.
O relatório do CTI sustenta que o então Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), que em 1969 daria lugar à Fundação Nacional do Índio (Funai),
desde os anos 1940 se utilizava de estratégias para esvaziar a presença guarani
no oeste do Paraná. Primeiro, deslocando os índios para reservas kaigang no
interior do estado – o que pode ser configurado como uma medida de
"extrema imprudência e violência" ao juntar "dois grupos
inimigos no mesmo espaço". Depois, negando o acesso dos guarani a direitos
tão básicos como ter um documento de identidade.
Além dos casos de trabalho forçado e tomada de
terras, a inexistência de postos do serviço indigenista no oeste paranaense
também contribuiu, segundo o relatório, para que os guarani da região se
deslocassem a Japorã (MS) e Jaguapiré (MS), em busca do RG que lhes daria
acesso a atendimento de saúde e educação. Uma vez lá, muitos eram instados a permanecer.
Por isso, apesar de terem vindo à luz em solo paranaense, trazem na cédula Mato
Grosso do Sul como lugar de nascimento.
É o caso de Assunção Benítez, 66 anos. O cacique da
aldeia Tajy Poty, em Terra Roxa, contou à CNV que deixou a região para cortar
cana-de-açúcar no estado vizinho, depois de ter fugido rumo à cidade para
evitar os trabalhos forçados na abertura de estradas. "Tirei documento com
48 anos, por aí. O papel diz que eu nasci no Mato Grosso do Sul. Eu disse que
tinha nascido aqui no Paraná, mas disseram para colocar Porto Lindo",
relata, em referência à terra indígena de Japorã (MS). A Funai chegaria ao
oeste paranaense apenas em 2012.
De acordo com o relatório do CTI, as consequências
das violações de outrora "se fazem sentir de maneira dramática ainda
hoje", sobretudo na situação de pobreza em que vivem as comunidades
indígenas da região de Guaíra e Terra Roxa. O reconhecimento oficial de que os
guarani foram parcialmente expulsos do oeste do Paraná parece ser vital para a concretização
das atuais demandas por demarcação. Ainda mais quando a sociedade local,
conforme denunciaram os próprios índios em seus depoimentos à CNV, promove uma
campanha negando-lhes direito à terra por serem "paraguaios". Em
fevereiro, após decisão judicial, a Funai publicou portaria ordenando
realização de estudos na área.
Negar identidade indígena aos guarani da região,
porém, não é novidade. Relatos e documentos oficiais mostram que a tática foi
utilizada pelo regime durante a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
"A Funai ficou contra nós, a gente sabe, em vez de defender", lembrou
Casemiro Pereira, da aldeia Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, à beira da represa.
"Em Curitiba, levou carta dizendo que não era índio porque tinha barba e
bigode. Tinha também antropólogo da Itaipu que dizia que era mestiço. E mandou
expulsar nós."
O relatório produzido por Ian Packer revela que o
especialista da Funai responsável por concluir o processo de titulação,
indenização e desapropriação das terras guarani que seriam inundadas pela
represa foi Célio Horst, filho de criação do ditador Ernesto Geisel. De acordo
com o documento, Horst concluiu que apenas cinco famílias que residiam na
região eram "guarani de verdade". Ainda assim, recomendou sua
retirada da terra. O resultado desse processo foi a criação de uma reserva de
230 hectares, onde hoje vivem – ou se espremem, como dizem – 700 índios.
Casemiro contou à CNV que se deu de maneira
violenta a expulsão dos guarani que viviam nas áreas prestes a serem tomadas
pelas águas da barragem, nos anos 1980. "Tinha muito guarani, mas
queimaram casa. Incra fez isso. Trouxe militar e expulsou e matou gente
lá", relatou, explicando que, antes da represa tomar conta de tudo, a
aldeia se chamava Jakutinga. "Não sei quanta gente morreu, mas foi mais da
metade. Alguns fugiram para o Paraguai."
"Voltarei a Dourados (MS) agora em abril para
ouvir o relato de outros povos indígenas, e ainda terei os meses de maio, junho
e julho, quando preciso entregar meu relatório, para viajar ao Xingu, no Mato
Grosso, e entender o que aconteceu com os avá-canoeiro antes da formação do
parque", anuncia Maria Rita Kehl, responsável na CNV por pesquisar as
violações contra índios e camponeses. "Não sei se minhas recomendações
serão seguidas, mas é evidente que a mais importante é a demarcação de
terras."
Depois de contar sua história a Maria Rita Kehl,
que agradeceu o depoimento, Casemiro ouviu da psicanalista que o relatório
final da Comissão Nacional da Verdade será impresso, vendido em livrarias e
enviado a todas as escolas e universidades do país. "Inclusive para
cá", reforçou. "Ah, isso é bom", devolveu o guarani, aparentando
estar satisfeito com a oportunidade de transmitir suas recordações. "Me
manda uma cópia que eu quero mostrar para o meu piá."
Fonte:
http://www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2014/04/nos-50-anos-do-golpe-cnv-ouve-guaranis-prejudicados-pela-ditadura-no-parana-3023.html/view
Postado
originalmente em: http://questaoagrariapr.webs.com em 28 de abril de 2014