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Por uma segurança jurídica que detenha o esbulho territorial no campo


No mês passado, uma pesquisa de opinião realizada pelo Datafolha revelou que a segurança é a segunda maior preocupação dos brasileiros, perdendo para aquilo em que efetivamente somos muito vulneráveis: a saúde.

Ainda que se possa dizer que essa aferição não faz nada mais do que evidenciar o óbvio, dada a recorrência com que a nossa integridade é ameaçada, pouca atenção tem sido dada a algumas variáveis que são estruturais à violência que impera e que equivocadamente é tratada como um fenômeno urbano.

Prova disso são os dados do último Mapa da violência, produzido a partir dos dados relativos aos homicídios ocorridos em todos os municípios brasileiros em 2012. O Rio de Janeiro, que se imagina ser um dos lugares mais perigosos, é o paraíso, quando comparado a municípios da região norte e centro oeste do Brasil, onde a densidade populacional é muito baixa e as cidades são, em regra, pequenas, sendo a localização a variável que as torna desproporcionalmente perigosas: aí está a zona de expansão da fronteira agrícola.

Para se ter uma ideia, há no Mato Grosso do Sul 31 municípios mais violentos do que o Rio de Janeiro, no Mato Grosso são 22 municípios em igual condição, dos quais apenas quatro tem mais de 100 mil habitantes, sendo que em 14 deles a população é inferior a 50 mil pessoas. No Pará 45,8% dos municípios são mais violentos que o Rio de Janeiro, no Tocantins em nove municípios com menos de 50.000 habitantes assassina-se proporcionalmente mais pessoas do que no antro do tráfico de drogas e da violência que ele encerra. No Acre nada menos que 53% dos municípios também são mais violentos que aquela que se apresenta mais como cidade pavorosa do que maravilhosa. Em Roraima, que ganhou projeção a partir da decisão da justiça brasileira de expulsar os fazendeiros invasores da terra indígena Raposa Serra do Sol, simplesmente em todos os municípios incluídos no Mapa da Violência se mata proporcionalmente mais do que no Rio de Janeiro.

Longe de buscar estabelecer relações simplistas que mais se prestam a distorções do que propriamente à compreensão de questão tão complexa quanto o é a que envolve o ato de tirar a vida de outrem, é imperioso identificar o que há de estrutural e de conjuntural em nosso padrão societário que favorece esse massacre difuso e que nos distingue inclusive de países onde a guerra é endêmica. De acordo com o Relatório da ONU relativo aos homicídios praticados no planeta em 2012, a taxa de homicídios no Brasil foi quatro vezes maior do que a do Afeganistão, onde se chega a pensar que há somente fanáticos e terroristas. Mesmo entre o povo Palestino, em que os confrontos bélicos parecem remontar ao tempo de Cristo, a cada pessoa assassinada, dentre número idêntico de brasileiros foram 3,4 que tombaram pela mesma razão. (http://www.unodc.org)

Isso indica que há fatores estruturais por detrás dessa violência desmesurada que, diga-se de passagem, vem aumentando no Brasil e, com certeza, guardam relação com o modelo de sociedade desigual, que teima em não reconhecer como legítimos os direitos universais mínimos e inalienáveis. É no desprezo a eles que florescem o autoritarismo e a prepotência cujo ápice é a evocação do direito de matar.

Tais lacunas se identificam com democracia frágil que, para além do exercício representativo que nos levou às urnas, supõe uma sociedade de diretos aos quais em igual medida há deveres que lhes correspondem. Democracia não combina com a barbárie que emana da superioridade das armas ou do poder econômico, e é essa sociedade que foi construída desde o período colonial, quando a economia açucareira justificou a invasão das terras indígenas e o genocídio para logo adiante justificar a escravidão africana e não menor crime humanitário.

A história e a geografia não o puderam desdenhar: os 25 países mais violentos do mundo estão localizados na África e na América Latina, sendo o Brasil é o 180 deles. O elo de ligação entre ambos os continentes é a funcionalidade na lógica agroexportadora, instituída para enriquecer a uns poucos a pretexto de aproveitar as oportunidades do mercado global que quase tudo pode prover aos que qualquer coisa podem comprar, exceto segurança para viver como tem que fazer os cidadãos comuns, como que diuturnamente lançados à cova dos leões.

Nesse milênio a América Latina volta a se projetar em vista do processo de reprimarização da economia: de acordo com a Cepal, entre 2000 e 2011 a participação do setor primário do Brasil passou de 6,4 para 6,8% e na Argentina saltou de 7,2 para 12,8%. Taxas mais ou menos bruscas vem sendo verificadas em praticamente todos os países do cone sul, situação cujos desdobramentos não se mede em cifras, porque envolvem um modelo de produção agrícola fundamentalmente apoiado em monoculturas, em pecuária extensiva e em extração mineral, todos cujo potencial impactante dispensa palavras. Basta lembrar que o Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, aqui biomas frágeis e fragmentos florestais são tomados como obstáculo ao desenvolvimento e não como repositório da vida que tem que pulsar para além da bolsa de valores.

Por ocasião das eleições presidenciais, a Confederação Nacional da Agricultura, juntamente com várias entidades de classe patronais urbanas e rurais entregou aos presidenciáveis a publicação "O que esperamos do próximo presidente 2015-2018" e que pode ser traduzida na exortação por uma combinação paradoxal entre proteção jurídica, subsídio estatal e liberalidade para com a grande propriedade, e que parecem não confirmar a missão de produzir mais para disseminar justiça e bem estar sociais. Ao invés de um clamor por segurança em plenitude, convoca-se o Estado a dois pesos e duas medidas em assuntos fundiários/agrários, provavelmente por residir aí as causas da insegurança, menos pelas ameaças de indígenas e sem terras do que pelos riscos de a Lei brasileira em vigor seja aplicada indiscriminadamente, sendo exatamente isso a essência da democracia e da paz social.

Conclamar ao presidente à mudança de procedimentos administrativos, Leis e até mesmo a Constituição para favorecer a legalização de propriedades que hoje não tem título de domínio válido (p.56) e, ao mesmo tempo, dificultar o reconhecimento dos territórios tradicionalmente ocupados (p. 55), substituir o princípio do direito territorial imprescritível dos indígenas pelo de ônus direto ao Estado ante esbulho possessório aos primeiros (p. 51), flexibilizar a tipificação do regime de trabalho análogo à escravidão (p. 45, 46), ampliar ingerências em atribuições dos órgãos ambientais (p. 59) e de controle de substâncias tóxicas de uso agrícola (p. 35) não parece convergir com o anseio de segurança que pulsa em cada um de nós.

Pressionar publicamente o mandatário máximo do Estado a manejar salvaguardas ambientais/sociais poderia ser legítimo caso estivesse aí a origem do problema da ineficiência proporcional das grandes propriedades segundo os resultados quantificáveis. Segundo o último Censo Agropecuário do IBGE, no Paraná os estabelecimentos com até 10 hectares faturaram, em média, R$ 3.632,46 por hectare/ano, enquanto os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares angariaram apenas R$ 741,19 por hectare, na mesma ocasião. No Brasil, as médias foram de, respectivamente, R$ 1.995,18 e R$ 296,58. E pensar que os primeiros correspondem a 52,6% dos agricultores brasileiros que dividem entre si 1,2% das terras agricultáveis. A área média de que dispõem é de 2,9 ha., mas em nenhum momento os que clamam pela intervenção do Estado mencionam esse como um problema a ser enfrentado para o aumento da produção e desenvolvimento agrícola.

Pode-se depreender que a proteção reclamada, se levada a cabo, só fará contribuir para um campo ainda mais desigual e excludente, logo, para um futuro ainda mais hostil. Felizmente, tais demandas não são as dos agricultores incontestavelmente eficientes, e muitos o são, sejam eles grandes ou pequenos, porque sua eficiência não é forjada graças à mão invisível do Estado, mas pelo trabalho, e nisso está a brecha para a construção de uma sociedade segura.

Eliane Tomiasi Paulino
Grupo de Estudos Agrários-LATEC/UEL
Versão simplificada do texto disponível em:
http://www.folhaweb.com.br/?id_folha=2-1--3475-20140930&tit=espaco+aberto.

Postado originalmente em: http://questaoagrariapr.webs.com em 01 de outubro de 2014.

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