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Sobre um golpe: o caso do MDA

A legitimidade de um governo que assume o comando de um Estado presidencialista por uma condução parlamentarista violadora da soberania popular, expressa em eleições, não está em questão aqui. Trataremos de outro golpe, o que extinguiu o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), responsável pela gestão pública do espaço agrário residual à poderosa economia do latifúndio e da moderna empresa rural.

Dentro dos princípios de uma sociedade cuja democratização começava a se traduzir em eliminação mínima das distorções socioeconômicas que sempre deram o tom da sociedade brasileira, o MDA foi criado em 1999 para cuidar da agricultura camponesa que, por força de Lei, denomina-se agricultura familiar e assim o é por limites precisos em termos de área ocupada, origem da força de trabalho e renda bruta anual.

Naquela ocasião, pela primeira vez voltava-se o Estado para um segmento historicamente alijado das políticas públicas capitaneadas pelo Ministério da Agricultura, ora denominado MAPA, o responsável pela grande propriedade ou, como institucionalmente consta, pela agricultura comercial. Vale observar o ardil desde essa divisão que os caracterizava, porque faz crer que a grande propriedade alimenta a cidade enquanto a pequena alimenta a família nela ocupada.

Isso pode contribuir para que muitos homens e mulheres de bem avalizem esse primeiro ato do atual mandatário da nação, já que a pequena propriedade parece contar tão pouco para a economia que, em tempos de austeridade, poderia ser acertado eliminar um ministério que drena recursos públicos. Daí ser oportuno trazer elementos adicionais que ampliem a mirada sobre o fim do MDA, como contraponto ao consenso social e sua indispensável contribuição a esse golpe.

Compreendê-lo requer considerar a sedução dos brasileiros cordiais ao projeto de país cujo princípio fundante é a desigualdade, daí o firme engajamento na tarefa de angariar a intolerância e o ódio, no qual o afastamento da Presidente democraticamente eleita é o menor dos problemas. Enquanto aguardam para se sentarem à mesa do banquete no qual certamente não lhes será reservado lugar, ainda estão a salvo desse sobressalto que já chegou aos que moram no campo e dele vivem, até porque foram tantas as migalhas da era PT que a maioria das despensas e armários da cidade estão cheios.

Nas palavras da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) "O Brasil foi reconhecido como um país livre da fome. Essa conquista decorre da decisão política de promover o crescimento econômico com distribuição de renda e o desenvolvimento de diversas políticas públicas com grande impacto nas famílias em situação de vulnerabilidade social, com impressionantes resultados alcançados na redução das desigualdades e da pobreza, que são objeto de amplo reconhecimento internacional." (FAO, 2016, p. 1).

Foi precisamente essa perspectiva política que fez o MDA capitalizar a extraordinária capacidade camponesa de abastecer o mercado interno com comida, gerar renda local e, com ela, promover as externalidades positivas assim identificadas na grande maioria dos municípios brasileiros. Municípios esses órfãos da incomparável riqueza, em termos de escala, que emana da grande indústria, comércio e serviços, tanto quanto das monoculturas de soja e cana, dentre outras típicas da grande propriedade, para não falar da pecuária extensiva e das terras ociosas, cuja dinâmica concentradora se traduz em circulação amputada da fração de renda auferida localmente.

O último censo agropecuário (IBGE, 2012) tratou de desfazer o mito de que a agricultura familiar é atrasada, tendo sido o primeiro dentre todas as séries históricas a discriminar o estabelecimento familiar do não familiar e, com isso, o impacto de ambos na agropecuária. Isso é o que lançou luzes sobre a composição da riqueza no campo: dentre os estabelecimentos com área de até 10 hectares, o valor médio da produção atingiu R$ 1.997,40 por hectare enquanto que os estabelecimentos com mais de 1.000 alcançaram o valor médio de apenas R$ 296,60, ou seja, quase sete vezes menos.

Outra variável não negligenciável é a geração de postos de trabalho e a situação não é diferente: os estabelecimentos que dividem entre si apenas 6,9% das terras agricultáveis do país empregam 74,6% das pessoas que vivem da agricultura, seja membros da família ou trabalhadores contratados (PAULINO, 2014, p. 139), trabalhadores esses que gastam a maior parte de seus rendimentos na cidade mais próxima, razão pela qual os núcleos urbanos menores não tem como prescindir da agricultura camponesa.

Obviamente essa diferença não se explica pela superioridade dos pequenos proprietários, porque a escassez de terras e de recursos o impede. É no descumprimento das prerrogativas constitucionais que obrigam as grandes propriedades a parâmetros de produtividade mínimos segundo a produção média no país, sob pena de desapropriação para fins de reforma agrária, que reside a explicação e isso tem um nome: latifúndio.

Ainda que se possa argumentar que eles são a minoria, ou como diria a Ministra da Agricultura recém destituída, Kátia de Abreu, que eles não existem mais, os dados falam por si: em 2010, mais da metade do Brasil rural, mais precisamente 52,6% da área declarada no país estava sob a cerca de 1,5% dos imóveis (PAULINO, 2015, p. 74). Como grandes proprietários acumulam, em regra, mais que uma propriedade, depreende-se que a concentração fundiária é ainda mais acentuada.

Por outro lado, mesmo quando as grandes propriedades são utilizadas produtivamente, e muitas o são, operam nos marcos da mecanização intensa, logo não empregam mão de obra capaz de mover a economia das pequenas cidades, do mesmo modo que seus proprietários não o farão, mesmo porque a maioria deles vive nos centros urbanos maiores, nos quais aplicam seus proventos.

Se os números comprovam onde e como se faz agricultura eficiente e onde há propriedade ineficiente, medidas que penalizam os responsáveis pela nobre e indispensável tarefa de prover alimentos aos que não tem terra, são no mínimo suspeitas, já que comprometem a soberania nacional, da qual o abastecimento é condição inalienável. De acordo com o I Censo Agropecuário da Agricultura familiar (IBGE, 2012), ela é quem fornece 70% dos alimentos básicos destinados ao mercado interno.

Enquanto isso, os poderosos da terra vem desafiando o Estado brasileiro a procrastinar no exercício da Lei, até que seja possível angariar legitimidade para modificá-la a seu favor. Tudo leva a crer que a extinção do MDA explica-se menos pela presumida austeridade ou mesmo pela cobiça aos 30 bilhões que Dilma Rousseff havia destinado aos camponeses, e mais pelo perigoso parâmetro da eficiência possível: é a produção alcançada em pouca terra, dinheiro escasso e tecnologia quase inacessível que escancara a noção de terra ociosa, logo do descumprimento da função social da terra.


O golpe ao MDA prenuncia outro de longa duração: a Constituição Federal dificilmente resistirá a esse pacto de poder, pelo menos no que condiciona a manutenção do direito de propriedade dos grandes proprietários ao cumprimento da função social da terra. É em tempos de reaparecimento da urgência da reforma agrária, a mais incômoda e indispensável bandeira da história brasileira, que o Estado de exceção se estabelece. Foi contra a reforma agrária que em 1964 chamaram Deus para, com a família, marchar pela liberdade. Assim nos foi impingido 21 anos de ditadura. Tanto quanto em 1964, caberá à história o escrutínio dos fatos ao rigor do tempo, o árbitro de todas as escolhas. Mas enquanto isso, caberá a cada um que come até três vezes por dia, pagar o preço do golpe injustificável à agricultura camponesa.

Referências:
FAO - Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura. Superação da fome e da pobreza rural: iniciativas brasileiras. FAO: 2016
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2006: segunda apuração - Brasil, grandes regiões e unidades da federação. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
PAULINO, Eliane Tomiasi. Abordagens teórico-metodológicas em Geografia Agrária: problematizações necessárias In: ROSAS, C.A.R.F. Perspectivas da geografia agrária no Paraná: abordagens e enfoques metodológicos. Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2015. p. 61-84.
PAULINO, Eliane Tomiasi. The agricultural, environmental and socio-political repercussions of Brazil’s land governance system. Land Use Policy, n. 36, p. 134-144, 2014. 

Eliane Tomiasi Paulino
Latec/UEL 

Postado originalmente em: http://questaoagrariapr.webs.com em 15 maio 2016.

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